24 de janeiro de 2019

A horda


Cavalgamos.

Desde as longínquas matas rasteiras das estepes até o Grande Mar do Oeste que transborda nos limites do mundo, cavalgamos.

Atravessando montanhas, margeando o curso dos rios, pisando em territórios e crânios dos que se antepõe à nossa marcha, cavalgamos.

Eis aqui, domando as intempéries do mundo, a nossa horda. Adiante dela, o destemido guerreiro cujos feitos fascinam e fazem fascinar os poetas. Na lâmina de sua espada converge o brutal desígnio de nós todos e os ânimos ancestrais – degola, decepa e esfola! Se brada “avante”, direcionamos nosso ímpeto no fim apontado em retumbante galope, impondo tremores a terras e gentes. Enquanto persistir montando e satisfazendo nosso anseio por saque e violação, sob seu comando cavalgamos.

Nossa cama é a cela; nosso piso, o estribo; nosso teto, o céu, seja em seu radiar ou oculto sob o véu da deusa da noite. A trotada incessante nos soa como a melodia do lar. Sobre o cavalo lutamos, mas também repousamos, comemos e fornicamos. Cada vício, cada dor, cada afago se dá em lombo equino, mesmo na embriaguez por vinho. Experimentando com toda a intensidade o êxtase e o sofrer, cavalgamos.

Desprezam-nos nas cidades e vilas. Julgam nossas vestes de pele, asquerosas; nossas barbas, desgrenhadas; nosso falar, sem eloquência; nossos modos, tão rudes. Porém, rodeados por comodidades das quais se envaidecem, seus corpos e almas não embrutecem. Sucumbem perante ínfimos infortúnios. Sacrificam aos deuses pela elevadíssima cultura, quando deviam blasfemá-los pela falta de vocação para a guerra. Por cima de sua douta frouxidão, devastando seus frágeis abrigos de mármore, cavalgamos.

Escarramos na civilidade, na barbárie acreditamos! A razão se esvai quando o pescoço encontra o fio da espada e a cabeça, o chão. Quiseram os deuses que assim fosse e somos o que somos em honra aos planos sagrados. De seu distante salão, o panteão nos testemunha; regozijam por nossas vitórias, escarnam dos que derrotamos. Por desdenharem da divina hostilidade que a tudo permeia, tombam eruditos em prejudicial orgulho. E nós, peregrinos em jornada de fé, cavalgamos.

Aos que nascem, concedemos a liberdade dos temidos como herança, exigindo para tanto apenas que prezem pela glória do nosso bando; desejamos que sejam indiferentes ao fardo da finitude da vida; ainda púberes conscientizamos da imortalidade compartilhada pela memorável grandeza da horda. Aos que morrem, agradecemos ao sangue que verteram em tributo aos demais, festejamos pela digna companhia que foram, clamamos aos deuses que os recebam celebrando seus feitos. E nós que com a horda persistimos, até que nossos corpos suportem os golpes sem que convalesçam, cavalgamos.

Cavalgamos.
Não habito na casa-grande
mas a casa grande habita em mim
Minha terra não tem senzala
mas tenho medo da senzala
Heranças compulsórias de um passado recente
de que tanto tempo me desfazer!

Não açoitei com vara ou chibata
mas açoitei com palavras e olhares
Não aprisionei em grilhões de ferro
mas deixei aprisionarem em cárceres
 - e ainda fingi que não vi!

Transformo em versos meu tormento
confesso meus crimes inevitáveis
mas no conforto de uma certeza:
a de que ninguém me punirá!
Mas e aos outros?
Os tormentos marcam carne e espírito
tal qual ferro em brasa
e nenhum crime passará impune
mesmo o nunca cometido!
Fecho os olhos, suspiro - e nada!
Sussurro, convoco - e ninguém!
No escuro e no silêncio prossigo
Sou nada, sou ninguém
Tenho nada, tenho ninguém

Razão contra a vontade

Aqui jaz a razão
entre as suas pernas
com seu flanco na mão
nos toques de afago
ardendo no fogo

Nada disso explico
apenas me excito
e sigo os desígnios da carne

Mas o pensamento irrompe
contrariando a libido
traindo o corpo

A mente quer nexo
mas há propósito no sexo?
E assim, tudo se esvai