28 de março de 2008

Histórias da Pista


Naquele domingo, o sol havia nascido por trás de densas nuvens das quais gotas despencavam furiosas. A pista de skate, localizada na praça principal do bairro de classe média e sempre lotada de adolescentes sedentos por manobras radicais, estava vazia devido ao mau tempo. Um grupo de sete meninos que freqüentava o lugar decidiu passar a tarde no shopping já que nenhum deles queria ficar em casa e não seria possível a habitual prática do skate.
Sentaram-se ao redor de uma das mesas da praça de alimentação e começaram a conversar. Sempre que eles faziam isso, o tema que dominava o diálogo era o skate, uma vez que era o que todos tinham em comum em seu cotidiano e o que os unia – afinal, muitos deles estudavam em escolas diferentes e moravam em ruas distantes, tendo contato somente através da pista do bairro.
- Vocês tão ligados no que aconteceu com o Lucas? – perguntou Guilherme em determinado momento da conversa.
- Qual deles, o Soares ou o Animal? – perguntou Felipe
- O Animal... – falou o Guilherme.
- Sei qual é.
- Ele tava andando numa calçada aí e, tipo, não viu um buraco, sabe qual é? E, tipo, a rodinha prendeu no buraco e ele caiu... Se fudeu muito, na moral! Bateu com a cara no chão e tudo!
- Pois é... Ele até quebrou os dois dentes da frente! Se fudeu muito mesmo... – disse Pedro que, dentre todos, era o mais próximo daquele garoto.
- Mas merda mesmo foi o que aconteceu comigo... – disse Guilherme.
- O que aconteceu, cara? – perguntou Diogo.
- Não ficou sabendo, cara?
- Não! Porra, fiquei quase um mês fora, na casa dos meus primos lá na Bahia, não se lembra?
- Ah, sim, mas achei que tu já tivesse sabendo... Sei lá, tá geral comentando!
- Tá, o que aconteceu afinal?
- O bichinha resolveu andar de patins! – interrompeu Arthur para provocar o amigo, como costumava fazer.
- Ah, vai tomar no cú, Arthur! Viado é você que cai de skate de propósito pra raspar a bunda no chão! Porra, eu só andei uma vez de patins, e foi por uma boa causa! – respondeu Guilherme, transparecendo agressividade no seu tom de voz e mudando a postura, parecendo que iria se levantar.
- Calma aí, relaxa cara! – falou Carlos, pousando a mão no ombro do Guilherme para mantê-lo no lugar.
- Pois é, cara, fica calmo aí! Não liga pro que o babaca do Arthur diz!– falou Diogo.
- Pode deixar, estou calmo. – respondeu Guilherme.
- Ok então... mas aí, explica essa parada de ter uma boa causa pra andar de patins! – disse Diogo.
- Tá bem – Guilherme concordou.
- Que isso, para! O Guilherme quando conta história é um porre! Ele vai contando tudo nos mínimos detalhes. É um verdadeiro saco! – comentou Pedro.
- Foda-se! Aliás, melhor assim, fico sabendo da fofoca por completo. Vai lá, pode começar, cara! – Diogo pediu.
O garoto, atendendo o desejo do amigo curioso, começou a narrar a história. Contou que havia alguns meses que ele estava freqüentando outra pista, que era melhor e onde tinha conhecido várias pessoas, mas que ficava do outro lado da cidade. Um dia, quando teve que ficar em casa estudando para as provas, resolveu dar uma saída rápida para comprar refrigerante no mercado. No caminho, encontrou André, um amigo que conheceu no seu antigo colégio e com quem costumava ir à pista de skate desde os nove anos, idade em que aprendeu as suas primeiras manobras.
Após algum tempo de conversa, Guilherme reparou que André estava diferente: tinha pintado o cabelo de vermelho e estava usando gel para arrepiá-lo. Ao comentar sobre a mudança no visual com o amigo, Guilherme ouviu uma resposta do tipo: “caraca, já to assim faz uns três meses! Ainda não tinha visto, cara?”.
Retornou para casa sentido certo desconforto. De súbito, percebeu que o fato de estar passando seus dias livres num lugar tão longe o estava afastando de seus amigos mais íntimos, que eram aqueles que freqüentavam a velha pista do bairro, gente que conhecia havia uns cinco, seis anos – no mínimo! Também se conscientizou de que estava deixando de conhecer muitas pessoas novas, pois quase todos os fins de semana apareciam jovens que iam ali pela primeira vez. Não conhecia sequer a namorada do seu irmão, que tinha quase a mesma idade que ele e que também se tornara freqüentadora. Daí veio a consciência, para ele desesperadora, de que, se continuasse assim, poderia perder amizades pela falta de proximidade física e de diálogo. Guilherme resolveu rever os velhos companheiros no sábado seguinte, o que considerou o primeiro passo de uma imposição a si mesmo de um hábito.
Assim que chegou, avistou uns colegas sentados em roda conversando e aproximou-se. Logo após cumprimentar a todos, dirigiu o olhar para a pista, da onde não conseguiu mais desviar: havia uma garota muito bonita, que aparentava ter mais ou menos a idade dele, descendo uma das rampas da pista em alta velocidade sobre um par de patins.
Quando chegou nesse momento da história, não pode evitar que a imagem de uma das manobras da menina, a primeira que ele assistiu, emergisse da memória. Na cena projetada pela sua mente, a jovem se aproximava de um pequeno obstáculo que os skatistas utilizavam para movimentos em corrimão, pulou nele cheia de graça e charme, com o longo rabo de cavalo negro saltando também no ar, como se acompanhasse seu corpo delgado de pele levemente queimada de sol na suave melodia que parecia soar dos seus gestos. Utilizou essa lembrança como recurso para poder compor uma descrição física aos seus colegas em que fosse exaltada a sua beleza.
- Pois é, sem noção Diogo, essa garota é muito linda mesmo! Cara, tem uns coxões que, ai meu Deus! – interrompeu Arthur, sendo ignorado por todos.
Guilherme, após os instantes de silêncio repentino que se seguiram ao comentário de Arthur, prosseguiu o relato. O garoto contou como, de súbito, esqueceu-se do mundo apenas para admirar a garota. Descreveu-lhes o seu imenso desejo de tê-la: visualizava com a imaginação ela nua e passando as mãos na sua pele, deslizando suavemente até a sua bermuda. Sentiu-se excitado como nunca; parecia que alguém lhe sussurrava ordens no ouvido que obedeceria sem contestar: “você tem que ficar com ela! Satisfaça-se, libere nela seus instintos primitivos!”
Perguntou para um dos garotos presentes, não recordava qual exatamente, quem era aquela garota maravilhosa andando de patins. Explicou-lhe que era uma menina nova no bairro chamada Joana, que estava sempre lá acompanhando as amigas. Um grupo que Guilherme já conhecia: umas garotas que de vez em quando iam para a pista andar de patins e que tinha nojo de skatistas. Relatou a sua frustração na hora que perdurou o resto do dia e a expressão de decepção estampada em sua face que pôde ver no espelho quando chegou em casa. Contou-lhes da indagação constante na sua mente: “como é que vou chegar numa mulher dessas? Como é que vou conseguir pegá-la?”. E como, de uma hora para outra, surgiu uma possível resposta: comprar um par de patins. Já dispunha do dinheiro: bastaria usar aquele que vinha economizando há meses para comprar um skate novo, pois o seu estava “todo fodido” fazia tempos. Depois de pensar um pouco a respeito, concluiu que talvez fosse a única forma de se aproximar da garota.
- Não acredito: você deixou de comprar um skate todo foda pra comprar aquele patins escroto! – exclamou Marcelo, que até então não tinha falado muita coisa.
Guilherme balançou a cabeça em sinal de positivo e retornou a contar a história. Adquiriu os patins e foi no domingo seguinte à pista para estreá-lo, torcendo para ser notado pela tal garota. Assim que a viu chegar, os calçou, aproximou-se da rampa e nela mergulhou, descendo em grande velocidade enquanto os demais garotos faziam piadas pelo fato dele estar com patins – brinquedo que, para aqueles jovens, era “coisa de mulher”.
- Cara, você é doido? Nunca tinha andado de patins e já vai chegando assim, descendo uma rampa à toda! – disse Diogo.
- Pois é, fiz merda... Achei que, como já sabia andar muito bem de skate ia mandar bem também no patins... Sei lá, achei que talvez fosse parecido! Mas, tipo, só na hora que eu comecei a descer a rampa que vi que não tinha nada a ver, só que não tinha mais como voltar atrás, tá ligado? – explicou Guilherme.
- Ai, que vacilo! – exclamou Felipe olhando para Guilherme como se o reprovasse.
- Tá, que seja! Diz aí: o que aconteceu depois de descer a rampa? – perguntou Diogo.
Guilherme levantou o braço esquerdo, mostrando para o amigo o braço envolto por um gesso cheio de assinaturas.
- Cai feio. Foi assim que eu quebrei o osso – respondeu, apontando para o membro fraturado.
- Conclusão dessa porra toda: perdeu o dinheiro do skate, quebrou o braço, ficou com fama de bichinha e ainda não pegou a mulé! – disse Arthur.
- È sério que você não pegou a garota, cara? – perguntou Diogo.
- É mesmo, você ainda não me contou o que aconteceu durante essa semana, cara... Chegou nela, cara? – Felipe quis saber.
- É, conta pra eles o que você me disse no MSN que aconteceu, cara! – pediu Arthur, com um sorriso debochado na face.
Guilherme explicou que resolveu entrar na comunidade da pista do bairro no Orkut para ver se encontrava o perfil dela por lá. Achou-o, mas, após o ler, ficou sem reação: a garota estava namorando. Depois de mais alguma investigação, descobriu que ela era a tal namorada do seu irmão. Leu e releu diversas vezes o depoimento romântico que ele havia deixado no perfil dela. A leitura lhe dava uma sensação de desconforto que, no entanto, não o impedia de analisar compulsivamente, além daquela declaração, também os scraps que o irmão deixara para ela e as fotos com os dois juntos.
Em certo momento, Guilherme ouviu barulho de passos atrás de si e constatou que era o seu irmão que estava entrando na sala naquele momento e que ia na direção do computador. Num rápido reflexo, virou-se e fechou a janela onde estava sendo exibido o perfil da Joana. Sentiu vergonha de que o irmão descobrisse que ele estava observando a sua namorada.
Quando Guilherme terminou a história, calou-se e reclinou-se para baixo; não queria cruzar o seu olhar com o de ninguém. Todos os presentes, inclusive o brincalhão Arthur, fizeram silêncio como numa espécie de demonstração espontânea de solidariedade e piedade para com o amigo desiludido ou como se compartilhassem os seus sentimentos de constrangimento e decepção. Foi Bernardo quem resolveu falar primeiro alguma coisa, numa tentativa de fugir da situação desconfortável:
- Mas, aí, cara, o que pretende fazer com os patins que você comprou? Vai deixá-los mofando no fundo do armário?
Então, Guilherme levantou o rosto, esboçou um sorriso sádico e falou com lentidão:
- Vou guardar eles até o dia vinte e quatro, pra dar pro Arthur de aniversário!