27 de novembro de 2016

O observador

            Nas profundezas minha caverna, encontrava conforto. A escuridão absoluta, o ar fétido e putrefato e o silêncio mórbido afastavam mesmo os seres repugnantes que se atraem pelas trevas e decadência. Distanciado do contato com os mortais e dos jogos de vaidade e poder dos imortais entediados, bastava-me a observação passiva de alento à solidão.
Jamais senti o prazer do sexo, mas já me satisfiz acompanhando orgasmos reais e simulados. Não tomei partido ante os horrores da guerra, mas acompanhei embates entre tropas e bombardeios. Nunca me identifiquei com grande causa, mas estive ao lado de revoltosos, revolucionários e conspiradores. Toda emoção que sentia se resumia à experiência do espectador, não do envolvido.  Se, por vez ou outra, atraiu-me a possibilidade de verter sangue e disseminar a dor apenas por poder fazê-lo, no fim das contas acabava optando por prosseguir na quietude. Era demasiadamente indiferente ao destino, julgava que qualquer ação causaria mais estorvo do que deleite. Minha vista a tudo alcança; esse meu olhar infinito a mim bastava.
Mas eis que um dia, os homens descobriram algo na minha caverna. Aparentemente, julgavam que as pedras que abundavam em meu recinto eram suficientemente valiosas para justificar os riscos da aventura em paragens hostis, de esgueirar-se nas trevas e na podridão, de promover a discórdia beligerante entre seus iguais, da exploração sem compaixão dos fracos e do enfrentamento de uma entidade ancestral que ali residia cujo poder não conseguiam dimensionar.
Poderia ter esmagado seus crânios com seus próprios martelos, rasgado suas frágeis carcaças com seus próprios serrotes e perfurado cada um de seus órgãos com suas próprias brocas. Minha caverna se transformaria em masmorra, a tortura se incorporaria à minha rotina pelas eras, os pesadelos que proporcionaria vingativamente seriam meu deleite... Em suma, eu seria capaz de causar sofrimento incomensurável pela ousadia tola de infringir meu isolamento voluntário. Mas qual seria a serventia de tal esforço?
Aprisionaram-me. De meu confinamento, observo a gradual destruição da minha antiga morada. Os mortais ainda hão de construir paredes que possam efetivamente me conter. Apenas a vontade seria suficiente para que as pedras do cativeiro se vertessem em poeira e que dos meus vigias restassem apenas os ossos. Porém, com qual propósito? Liberdade? Ilusão dos mortais para se proverem de algum ímpeto por realizações que, na verdade, jamais usufruirão; distração fútil para existências tão efêmeras. Se para mim basta querer para tudo fazer, só encarceram-me porque nada tenho a obstar.
O afã predatório da espécie causará sua ruína. Um dia, sobrará pouco mais que memória, arrependimento e lamento da miséria que trouxeram a si mesmos. Ou não. Aguardo indiferente à conclusão da tragédia humana para, em seguida, decidir o próximo alívio ao absurdo e ao tédio perpétuos.