1 de abril de 2012

"Cidadão de bem"

Era uma pessoa direita, um verdadeiro “cidadão de bem” (seja lá o que essa expressão signifique), de cabelo curto bem penteado e trajando terno. Certa vez, trafegava pela Rio Branco às seis e meia da tarde, no conforto do seu carro com ar-condicionado. De repente, apareceram, da esquerda, jovens com os rostos pintados, narizes de palhaços, gritando palavras de ordem e empunhando placas e apitos.

Os jovens, aproveitando que os carros haviam parado no sinal vermelho, sentaram-se na rua, bloqueando o trânsito. O sol incidia sobre as suas cabeças, fazendo-os suar. Gritavam em coro frases de impacto, mas a pessoa direita não as ouvia. O “homem de bem”, ansioso por chegar logo em casa depois de um dia empenhado em coisas importantes (seu trabalho chato de contador), buzinou. Em seguida, vários outros motoristas também buzinaram.

Pouco depois, brotaram os homens do batalhão de choque da Polícia Militar, que juntos compunham uma massa uniforme que golpeava seus cassetetes em seus escudos. Disparam balas de borracha e gás lacrimogêneo. Alguns senhores que estavam no local, mas que não participavam do protesto, sofreram os efeitos do gás. Um jovem, de barba ruiva e cabelos desgrenhados, correu na direção oposta do batalhão e escorregou, caindo sobre o capô do carro da pessoa direita. Um policial o puxou pela camisa, jogou-o ao chão e golpeou sua cabeça com seu cassetete. O sangue escorreu pela testa do jovem.

Com os manifestantes dispersos, o trânsito voltou a fluir. O “homem de bem” chegou em casa a tempo de assistir seu bom Jornal Nacional. Assim, pôde assistir ao William Bonner explicando o ocorrido que presenciou: a ação policial “pacífica” garantiu com que os “baderneiros” não continuassem a causar congestionamento numa importante avenida carioca. E eis que, então, a pessoa direita aplaudiu o ato da polícia em favor da “ordem” e insultou os “vagabundos”.

19 de março de 2012

O soldado

Naquela época de guerra, quem servia em campo às Forças Armadas era acompanhado pelo medo constante de um encontro súbito com o inimigo, fosse por fatal casualidade ou por um ataque surpresa organizado pelos adversários. Eventualidades que normalmente ninguém reteria a atenção, como o som provocado pelo vento na vegetação, tornavam-se prenúncios megalomaníacos, mas falsos, de uma emboscada fatal.

Esse não era o caso do soldado – personagem de nome desconhecido, pois o registro de sua passagem no Exército se perdeu em meio aos numerosos papéis esquecidos nos arquivos militares. O soldado estava alocado num acampamento situado numa região de pouca relevância estratégica e muito recuado em relação à linha de frente. Logo, o estado de alerta e paranóia não seriam condizentes com a situação em que vivia na zona de conflito.

Certa vez, até se perguntou o porquê da acomodação de uma companhia naquele local. Sabia das ordens superiores de permanecerem ali até que recebessem, por transmissão de rádio, o comando para prosseguir. O soldado cogitou que o sinal para que avançassem não veio e jamais viria porque o movimento não faria mais sentido tendo em vista a nova conjuntura do campo de batalha; nesse caso, era mais cômodo para os estrategistas ignorá-los do que deslocá-los.

Por volta das seis da tarde de um dia qualquer, o soldado se recolhia. Normalmente, seu turno na vigília do acampamento iria até umas oito da noite, mas seus superiores o dispensaram de cumprir o restante do horário. “O serviço hoje foi puxado”, justificou um dos oficiais.

Mas não se sentia exatamente cansado. Os braços doíam de tanto tempo esticado segurando o rifle e os ouvidos ainda zumbiam por conta do estalo seco dos disparos. Porém, sua atenção não se dirigia ao seu corpo, o que quase anulava da consciência os desconfortos da fadiga física. Experimentava um alívio em seu espírito com o qual se deleitava.

Desde que o transferiram para aquele acampamento militar, vivenciava uma rotina determinada pelos oficiais responsáveis. Os dias eram exatamente uns como os outros, salvo que uns choviam e outros não: acordava, exercitava-se, alimentava-se, vigiava e dormia sempre nos mesmos horários. As folgas eram determinadas por escala e, ao menos nesse dia, tinha liberdade para decidir aquilo o que faria e quando. O que não significava muito na prática, pois não havia nada a ser feito nas folgas além do que já que era feito nos dias de serviço. Ao menos, não precisava fazer a ronda.

Não costumava recordar muito das coisas que fazia. A rígida estrutura que regia seu cotidiano se impunha igualmente aos mecanismos mnemônicos da mente: sumia todo o específico e não-repetível do seu dia, como o cadarço da bota que estava desamarrado e que, por isso, teve sua ponta submersa numa poça de lama. Persistia em sua memória somente o dever cumprido, sem qualquer resquício do como foi cumprido. Isto porque os detalhes ínfimos lhe eram insignificantes e desinteressantes.

Deitava-se sempre às nove da noite e dormia logo em seguida, sem pensar em nada antes ou, quando muito, num simples: “finalmente, cama!”. Ao menos daquela vez teve a chance de proceder de outro modo: repousou o corpo sobre o lençol uniformemente branco que cobria o colchão e reviveu pela memória seu dia. Sentia novamente o peso da espingarda em suas mãos, a força que a lançava para trás a cada disparo, a mancha de sangue que crescia na parede pintada de gelo e a carne humana que despencava perante seus olhos.

As imagens que recordava eram incompletas, pois, de todos os sujeitos contra os quais atirava, somente um tinha rosto: um homem muito pálido e narigudo. Possivelmente, decorria da pouca importância que dava aos traços de cada um. Sua consciência não retinha as fisionomias individuais, logo, percebeu a todos como uma massa uniforme – com exceção daquele cuja singularidade era inescapável, isto é, o branco de nariz protuberante. Foi somente a face desse, que tanto se diferenciava dos demais, a única capaz de ser notada e lembrada.

Ao reviver pela memória o episódio, tudo o que era exterior ao soldado era destituído de expressividade. Seus colegas não sorriam, não choravam, não hesitavam em apertar o gatilho, não faziam o sinal da cruz para os condenados; nem mesmo aqueles que iam morrer demonstravam algo, fosse medo, coragem, arrependimento, fé ou o que fosse. Afinal, no decorrer daquela tarde, atentou-se apenas a si mesmo, ao pálido narigudo que suava torrencialmente e ao primeiro disparo a atingir o corpo desse condenado, que perfurou-lhe o olho esquerdo.

Em meio às lembranças, adormeceu. Acordou no dia seguinte com os braços ainda doloridos, mas se sentido renovado. Durante o desjejum, refletiu consigo mesmo sobre a sensação, avaliando-a positivamente. Concluiu que a execução lhe fizera bem ao ânimo, ajudou-o a sentir que estava, afinal, vivo ainda. Ao terminar a refeição, durante a qual permaneceu em silêncio, cogitou que, talvez, teria outra oportunidade para matar até o final da guerra. A idéia lhe agradou.
      

5 de fevereiro de 2012

Sobre cães, pássaros e gatos

12 de Fevereiro

Hoje, um dos cães que cuido foi agressivo comigo. Ou melhor, comigo não, com todos os funcionários desta casa que cuida de animais. Primeiro, rosnou e latiu para os vigias noturnos; depois, quando tentaram lhe aplicar uma injeção para que se calasse, mordeu um dos guardas.

Foi então que me acordaram. Ninguém sabia como lidar com o tal cachorro enraivecido. Quando cheguei, ele ainda urrava e ameaçava atacar quem se aproximasse. Arrisquei chegar perto a fim de contê-lo, mas acabei sendo agredido. Infelizmente, tamanho foi seu surto que jamais conseguiríamos contê-lo... Tive que dar a fatídica ordem aos guardas de atirar no coitadinho.

Afinal, por que ele se revoltou logo contra nós, que o alimentamos, demos água e oferecemos um teto, quando o resto do mundo o desprezava? Ora, se não fosse pelo nosso acolhimento caridoso, ainda que determinado pelo Estado, não resistiria às adversidades do mundo! Ele só existia porque nos apiedamos dele; se o deixássemos à própria sorte, estaria fadado à extinção, tão frágil e dependente que sua espécie era. Será que jamais constatou e refletiu sobre tais fatos óbvios?

Acho que não. No fim das contas, era só um animal e animais não pensam. E é por isso é que os humanos é que são donos dos animais e não o contrário. Comandamos o mundo porque somos dotados da Razão. Poderia um ser inapto à sobrevivência na natureza, mas que tenta decepar a mão que o alimenta dirigir uma civilização? Se eu estiver enganado e forem capazes de qualquer tipo primitivo de reflexão, ainda assim creio que concordariam com as minhas opiniões.

21 de Fevereiro

Embora faça parecer que não, como adequado ao meu trabalho, tenho pena de matar mesmo nas circunstâncias em que isto se faz indispensável. Eu sei que os animais não pensam, porém, ao vê-los momentos antes de serem sacrificados sempre imagino que me olham com desespero e como se pedissem clemência. Sei que é besteira e que as limitadas mentes dos bichos sequer seriam capazes de compreender o conceito de “clemência” (nota: as vezes suspeito que nem mesmo sentimentos possuem, pois só nós, seres humanos, evoluímos neurologicamente o suficiente para sermos dotados de faculdades emotivas). Será isso reflexo de algum sentimento que me envergonho de assumir que tenho? Talvez seja aquilo a que chamam de “piedade”. Mas, por quê? Esses animais nem nome têm: chegam aqui semanalmente e ocupam o lugar de outros que já se foram! De tantas entradas e baixas, somos obrigados a numerá-los para manter o controle da população. E são todos tão parecidos – e, o pior, igualmente fedorentos e porcalhões! Logo, não é apego; só que, senão o é, o que é então?

Hoje foi sexta-feira, dia habitual para a vinda de novos animais para a casa. Como de praxe, o doutor os avaliou e indicou quais estavam saudáveis ou não. Infelizmente, temos que sacrificar os acidentados e os doentes. Houve, por exemplo, um pastor alemão que chegou febril e que mal se mexia. Por algum motivo, senti-me desconfortável ao vê-lo entrando na câmara. Mas também fiquei curioso e fui até o vidro acompanhar o processo. As energias corpóreas que poucos minutos antes pareciam estar se esvaindo de repente jorrou e o cachorrinho se debateu. Acho que sentiu dor.

Cruel, mas necessário. As jaulas não comportam todos os animais que mantemos – e olha que o governo não manda mais tantos quando mandava uns quatros ou cinco anos atrás! Fora que seria por demais oneroso, ou mesmo inútil, investir no tratamento médico de animais capturados nas ruas. A solução mais humana é aliviar de uma vez seus sofrimentos e sacrificá-los. Ao menos, é o que eu tento raciocinar nos momentos em que sinto-me atormentado pelo meu dever; quando não resolve, esforço-me por lembrar de que, no fim das contas, não são homens e sim meros bichos...

7 de Maio

Não lembro quem que disse que nada mais triste que um pássaro preso. A frase faz sentido: as aves aspiram tanto por liberdade que não conseguem se estabelecer num lugar, pois assim que chegam já querem partir para o próximo destino. Não são habitantes de país algum; pertencem ao mundo. Nesse sentido, imagine o quão agoniante deve ser o cativeiro para eles!

Hoje chegou muitos pássaros, todos feios. Ao que parece, estavam em bando, migrando para outro lugar para fugir do atual clima da nossa pátria (não sei como um ser pode achar o clima aqui ruim... parece-me tão agradável! Enfim, animais... quem os entende?).

Detesto eles. Embora alegres, sujam todo o lugar em que passam! Isso sem falar que são vetores de várias doenças, algumas das quais possivelmente ainda nem diagnosticadas! É inquestionável: pássaros são uma das grandes pragas da civilização.

27 de Julho

Sei lá por qual motivo, ultimamente chegaram muitos gatos por aqui. Não consigo mais relaxar: os felinos sempre me deixaram paranóico. Eles ficam estáticos, olhando atentamente o ambiente, como se fizessem cálculos intermináveis para alguma artimanha. Fora o talento que têm para se ocultarem e se esgueirarem por frestas antes de atacarem subitamente.

Quando criança, havia um na minha vizinhança que era muito branco e com olhos azuis. Embora até o achassem bonito, ninguém gostava dele – alguns até tinham medo. Era um pouco arisco, só gostava da companhia de outros gatos, sobretudo se fossem fêmeas. Tinha épocas em que sumia por dias, semanas ou mesmo meses e, quando voltava, não raramente estava um pouco machucado. Ninguém conseguia imaginar o que exatamente ele fazia quando desaparecia. Aliás, acho que ninguém fazia muita questão de saber.

Eu tinha certo medo dele. Às vezes, eu estava na rua e cruzava com ele. Eu tinha a impressão de que ele me espiava, observava-me atentamente e analisava cada movimento meu, como se planejasse fazer algo contra mim. Como eu adorava as épocas em que aquele maldito gato sumia!

Curiosamente, ele estava num dos primeiros carregamentos de animais que recebi aqui na casa, uns cinco ou seis anos atrás. Obviamente, envelheceu: alguns pêlos caíram, estava mais magro e com uma aparência cansada. Porém, mantinha aqueles olhos azuis que me fitavam inescrupulosamente. Embora saudável, mandei-o para o sacrifício. E, pela primeira vez na vida, não senti pena alguma de fazê-lo...

30 de Agosto

Acho que ELES se aproximam. Faz semanas já que não enviam animal algum para cá. O governo está tão preocupado com ELES que já se esqueceu de todo resto...

Trechos do diário de Hans Schröeger, oficial alemão que dirigiu um campo de concentração de 1939 a 1944 que mantinha principalmente judeus, ciganos e opositores políticos como prisioneiros. Mandou executar, dentre outras pessoas ilustres, o pastor luterano de ascendência judaica Franz Lindemann e o ex-membro do Partido Comunista Otto Hirschtein, coincidente seu vizinho durante a infância.

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Considerações finais: hoje, revendo alguns arquivos .doc com contos inacabados e esquecidos pelo meu computador, encontrei esse texto - que, para minha surpresa, estava completo e numa etapa já avançada da revisão, faltando, poucos acertos a serem feitos antes de publicar no blog. O arquivo datava de junho de 2010. Não sei porque nunca o postei... Tá certo, sei sim: porque é meio bobo de tão ingênuo. De todo modo, vale por um leve tom de humor negro.