19 de março de 2012

O soldado

Naquela época de guerra, quem servia em campo às Forças Armadas era acompanhado pelo medo constante de um encontro súbito com o inimigo, fosse por fatal casualidade ou por um ataque surpresa organizado pelos adversários. Eventualidades que normalmente ninguém reteria a atenção, como o som provocado pelo vento na vegetação, tornavam-se prenúncios megalomaníacos, mas falsos, de uma emboscada fatal.

Esse não era o caso do soldado – personagem de nome desconhecido, pois o registro de sua passagem no Exército se perdeu em meio aos numerosos papéis esquecidos nos arquivos militares. O soldado estava alocado num acampamento situado numa região de pouca relevância estratégica e muito recuado em relação à linha de frente. Logo, o estado de alerta e paranóia não seriam condizentes com a situação em que vivia na zona de conflito.

Certa vez, até se perguntou o porquê da acomodação de uma companhia naquele local. Sabia das ordens superiores de permanecerem ali até que recebessem, por transmissão de rádio, o comando para prosseguir. O soldado cogitou que o sinal para que avançassem não veio e jamais viria porque o movimento não faria mais sentido tendo em vista a nova conjuntura do campo de batalha; nesse caso, era mais cômodo para os estrategistas ignorá-los do que deslocá-los.

Por volta das seis da tarde de um dia qualquer, o soldado se recolhia. Normalmente, seu turno na vigília do acampamento iria até umas oito da noite, mas seus superiores o dispensaram de cumprir o restante do horário. “O serviço hoje foi puxado”, justificou um dos oficiais.

Mas não se sentia exatamente cansado. Os braços doíam de tanto tempo esticado segurando o rifle e os ouvidos ainda zumbiam por conta do estalo seco dos disparos. Porém, sua atenção não se dirigia ao seu corpo, o que quase anulava da consciência os desconfortos da fadiga física. Experimentava um alívio em seu espírito com o qual se deleitava.

Desde que o transferiram para aquele acampamento militar, vivenciava uma rotina determinada pelos oficiais responsáveis. Os dias eram exatamente uns como os outros, salvo que uns choviam e outros não: acordava, exercitava-se, alimentava-se, vigiava e dormia sempre nos mesmos horários. As folgas eram determinadas por escala e, ao menos nesse dia, tinha liberdade para decidir aquilo o que faria e quando. O que não significava muito na prática, pois não havia nada a ser feito nas folgas além do que já que era feito nos dias de serviço. Ao menos, não precisava fazer a ronda.

Não costumava recordar muito das coisas que fazia. A rígida estrutura que regia seu cotidiano se impunha igualmente aos mecanismos mnemônicos da mente: sumia todo o específico e não-repetível do seu dia, como o cadarço da bota que estava desamarrado e que, por isso, teve sua ponta submersa numa poça de lama. Persistia em sua memória somente o dever cumprido, sem qualquer resquício do como foi cumprido. Isto porque os detalhes ínfimos lhe eram insignificantes e desinteressantes.

Deitava-se sempre às nove da noite e dormia logo em seguida, sem pensar em nada antes ou, quando muito, num simples: “finalmente, cama!”. Ao menos daquela vez teve a chance de proceder de outro modo: repousou o corpo sobre o lençol uniformemente branco que cobria o colchão e reviveu pela memória seu dia. Sentia novamente o peso da espingarda em suas mãos, a força que a lançava para trás a cada disparo, a mancha de sangue que crescia na parede pintada de gelo e a carne humana que despencava perante seus olhos.

As imagens que recordava eram incompletas, pois, de todos os sujeitos contra os quais atirava, somente um tinha rosto: um homem muito pálido e narigudo. Possivelmente, decorria da pouca importância que dava aos traços de cada um. Sua consciência não retinha as fisionomias individuais, logo, percebeu a todos como uma massa uniforme – com exceção daquele cuja singularidade era inescapável, isto é, o branco de nariz protuberante. Foi somente a face desse, que tanto se diferenciava dos demais, a única capaz de ser notada e lembrada.

Ao reviver pela memória o episódio, tudo o que era exterior ao soldado era destituído de expressividade. Seus colegas não sorriam, não choravam, não hesitavam em apertar o gatilho, não faziam o sinal da cruz para os condenados; nem mesmo aqueles que iam morrer demonstravam algo, fosse medo, coragem, arrependimento, fé ou o que fosse. Afinal, no decorrer daquela tarde, atentou-se apenas a si mesmo, ao pálido narigudo que suava torrencialmente e ao primeiro disparo a atingir o corpo desse condenado, que perfurou-lhe o olho esquerdo.

Em meio às lembranças, adormeceu. Acordou no dia seguinte com os braços ainda doloridos, mas se sentido renovado. Durante o desjejum, refletiu consigo mesmo sobre a sensação, avaliando-a positivamente. Concluiu que a execução lhe fizera bem ao ânimo, ajudou-o a sentir que estava, afinal, vivo ainda. Ao terminar a refeição, durante a qual permaneceu em silêncio, cogitou que, talvez, teria outra oportunidade para matar até o final da guerra. A idéia lhe agradou.